Por Enrico Ortolani – Professor titular de Clínica de Ruminantes da FMVZ-USP ortolani@usp.br
Os humanos evoluíram enormemente desde os primórdios, graças às descobertas e acúmulos de conhecimentos que levaram à solução dos problemas que castigavam o homem primitivo e tornavam sua vida curta, desconfortável e desafiante em função da natureza inóspita. Posteriormente, muitas conquistas foram celebradas com prêmios Nobel e outros galardões, mas outras surgiram aos poucos e quase não são lembradas. A simples criação de um sapato foi algo fenomenal, especialmente para o homem que vivia nas neves e em locais pedregosos.
A raça Nelore é conhecida por ser mais “vagarosa” em seu ciclo biológico, pois as fêmeas iniciam a puberdade mais tarde e têm vida sexual mais longa do que as das raças taurinas. Os defensores do cruzamento industrial, na década de 90, propuseram, a qualquer custo, o cruzamento com taurinos como solução para aumentar a taxa de desfrute e a rentabilidade nos rebanhos zebuínos. A onda passou, mas o questionamento ficou.
Há cerca de 20 anos, alguns pesquisadores canarinhos começaram, para valer, a selecionar fêmeas Nelore para precocidade e a melhorar o manejo nutricional e sanitário, solucionando assim a “vagareza biológica” e dando origem às fêmeas superprecoces, popularmente chamadas de “precocinhas”. Ninguém celebrou ou premiou essa grande conquista da pesquisa pecuária brazuca, não é? Vale um prêmio para esses conquistadores ainda vivos!
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Números importantes
No Brasil não somos muito afeitos a levantamentos de dados e estatísticas, mas, segundo informação de uma grande “associação reprodutiva” que reúne fazendas representativas de 10 Estados, 75% delas produzem superprecoces, num total de 60.000 por ano. No âmbito das propriedades que trabalham com CEIP (Certificado Especial de Identificação e Produção), estima-se que esse número chegue a 300.000 e, fora destas, existem outras milhares de superprecoces não computadas.
Segundo levantei, quando começou a seleção para precocidade apenas 1% das novilhas Nelore eram naturalmente fecundadas com menos de 16 meses, uma porcentagem desprezível. Descobrindo o caminho das pedras, nos dias atuais, nas melhores fazendas, esta porcentagem pode atingir 70%. Neste mesmo período, com o uso de touros selecionados com DEP (diferença esperada na progênie) para precocidade, o bezerro macho médio passou a nascer 15% mais pesado, de 28 kg para 32,2 kg. Porém, segundo dados, os problemas de parto em novilhas superprecoces aumentaram na casa dos 1.000%, sendo até então desprezível e atingindo agora, em algumas propriedades 16%, ou mais. Uma barbaridade!
Também surfando na onda da precocidade, algumas das melhores fazendas sulistas de raças taurinas, em especial as de carimbo Angus, estão acelerando o passo para que as fêmeas se tornem superprecoces. Fruto dessa seleção e manejo, novilhotas de 10 meses estão sendo cobertas. Um dos mais conceituados veterinários de campo dessa região me confessou recentemente que não aguenta mais fazer cesarianas nessas superprecoces.
Fatores a considerar
Antes de entrarmos no tema propriamente dito, vamos recordar alguns fatos importantes. Quase 80% do peso do feto bovino é formado nos últimos três meses de gestação, especialmente nas últimas quatro semanas. Na fêmea Nelore, a gestação tem uma duração média de 287 dias, enquanto nas taurinas, de 282. Porém, é também citado que, ocasionalmente, a gestação pode se prolongar por até uma semana nessas fêmeas. Em ambas as raças, os machos demoram cerca de três dias ou mais para nascer do que as fêmeas. Por esse motivo e outros hormonais, os bezerros nascem ao redor de 10% mais pesados do que as bezerras.
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Outro fato importante é que, se a fêmea Nelore for coberta por um touro Angus, seu bezerro nascerá, em média, com 2 kg a mais. Por outro lado, se a mesma fêmea for coberta por um touro Wagyu (na língua nipônica, wa = japonês; gyu = gado) o bezerro nascerá com 2,5 kg a menos. O que a genética não faz, hem?
Independentemente de a fêmea ser ou não superprecoce, os problemas de parto, chamados cientificamente de distocias (dis = dificuldade; tokos = parto), têm um risco triplicado de ocorrer em novilhas (nulíparas) do que em vacas que pariram várias vezes (multíparas). Elementar meu caro Watson, pelo fato das novilhas ainda estarem em crescimento, os ossos do quadril; o espaço do canal da pelve, por onde tem que passar o feto; e o tamanho da vagina e da vulva são bem menores nessa categoria, dificultando a saída do rebento! Também é muito lógico, que pela razão de os bezerros machos e cruzados, com taurinos, serem mais pesados e maiores que as bezerras e os fetos nelores puros, que as distocias são mais frequentes nos nascimentos dos primeiros. Não precisa nem dizer que, no prolongamento da duração da gestação, a frequência dos problemas de parto também aumenta.
Dor de cabeça para o produtor
As distocias em superprecoces passaram de solução a ser uma dor de cabeça para uma parte dos criadores. Primeiro, pelo maior cuidado e atenção no parto, exigindo do tratador ou do veterinário a ajuda na retirada do feto ou até a realização de cesariana, perdendo nestes processos algo como 5% a 10% dos rebentos. Segundo, as doenças em bezerros nascidos num parto distócico têm 2,4 vezes maior risco de acontecerem nos primeiros 45 dias de vida do que em bezerros nascidos num parto normal. Dentre as enfermidades destacam-se as diarreias e brônquio-pneumonias infecciosas. Um estudo verde-amarelo identificou que a mortalidade nesse período atinge 14,4%, ante 6% da média nacional.
Recentemente, tive um longo bate-papo com um destacado pesquisador que ajudou a desenvolver a ideia das superprecoces e depois estudou os fatores de risco que as levam a ter distocias ou perdas gestacionais. Nesses estudos, ele e sua equipe acompanharam mais de 2.000 superprecoces da raça Nelore. O estudo considerou uma frequência de dificuldade de parto (DP) até 5% como razoável e esperado. O primeiro gargalo da distocia está ligado à idade com que as feminhas foram fecundadas. Quando a cobertura se deu com menos de 13,6 meses (408 dias) a frequência de DP se elevou sem parar, de 5% a até 16% naquelas inseminadas aos 11 meses de vida. Por outro lado, aos 18 meses, esses casos eram mínimos.
Peso ao nascimento
Outro fator importante foi o peso corporal ao nascimento, que, numa boa propriedade, é sempre avaliado. Independentemente de sexo, o valor de 5% de DP foi obtido com 31 kg, subindo o pico do Everest com 30% de DP em rebentos com 43 kg, e descendo ao nível do mar com 23 kg. O estudo também contemplou a linha de corte de acordo com o sexo do bezerro. De longe, as fêmeas geraram menos problemas do que os machos. Mesmo nas bezerras mais pesadas (31 kg) as distocias não ultrapassaram os 5%, enquanto em machos as frequências iam desse valor ao pico da montanha quanto mais pesado era o bezerro recém-nascido.
Você já deve ter notado que o parto das fêmeas é menos complicado e mais rápido do que o dos machos. Além do menor peso corporal, outros pontos anatômicos facilitam a passagem da bezerra pelo canal da pelve, vagina e vulva da novilhota. No macho, o ponto crítico é a maior largura da “espádua” e o perímetro toráxico (medido na altura do coração). Baseado nesse limite, um departamento de pecuária da Austrália recomenda que seja indicado, para a cobertura de nulíparas, reprodutores que tenham a “espádua” lisa ao invés dos mais angulados e proeminentes (foto abaixo). Está gostando do assunto? Então não perca o próximo artigo! Combinado?