Na visão dos especialistas e com base em estudos comprovados na prática, saída passa pela assistência técnica, pelo acesso ao crédito rural, pelo associativismo e pela gestão. Políticas públicas são parte essencial da solução para os pequenos produtores.
Por Tatiana Souto
O número de produtores de leite brasileiros vem diminuindo ano a ano. A maior parte do leite do País passou a ser produzida por pequena parcela de pecuaristas, considerados de médio a grande portes, provocando uma acentuada concentração no setor. Em uma economia de competição acirrada, observa-se que o pequeno produtor está sendo excluído da atividade. A pergunta é: essa história pode ter um desfecho diferente?
Em termos estatísticos, o produtor de subsistência está de fato cada vez mais à margem do mercado que exige algum tipo de fiscalização, seja ela municipal, estadual ou federal. Levantamento feito em 2014 pelo analista Lorildo Stock, da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora (MG), apontava que o número global de produtores de leite no Brasil vem caindo à taxa de 2,7% ao ano – e que os pequenos têm participação cada vez menor na produção nacional. O estudo que mostra o encolhimento de 216 mil produtores entre 2006 e 2012 “curiosamente, coincide com a queda do número de fazendas com produção de até 50 litros de leite por dia”, diz Stock.
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Ele assinala, ainda, que o aumento praticamente anual do volume de leite fiscalizado no País (em torno de 23,1 bilhões de litros em 2016, segundo o IBGE), mesmo com uma menor quantidade de pessoas dedicadas à atividade, é atribuído a pecuaristas que alcançaram maior produção e produtividade. “Levando em conta todos os produtores com mais de 100 litros por dia, são 135 mil estabelecimentos que, juntos, produzem 84% do leite nacional”, dizia Stock, em seu estudo de 2014, os dados mais recentes a respeito do assunto.
Assim, a concentração na atividade leiteira, situação na qual um número cada vez menor de pecuaristas fica responsável por abastecer o mercado com volumes maiores de produção, ocorre a passos largos no País, conforme especialistas ouvidos pela Mundo do Leite. E marginaliza, ano a ano, o pequeno produtor, confinando-o à subsistência, à clandestinidade no comércio, ou, caso trabalhe de maneira legalizada, a nichos de mercado ligados, por exemplo, ao “fair trade” (comércio justo, na tradução para o português) e à pecuária orgânica. A saída, para esses especialistas, é legalizar a atividade e crescer.
O presidente da Câmara Setorial Produtiva do Leite do Ministério da Agricultura, Rodrigo Alvim, vai além e diz que não só pecuaristas de menor porte estão desistindo, num mercado cada vez mais competitivo e de pressão de custos. “O que se nota é que aqueles produtores que levavam a atividade como meio de subsistência, com pouco ou nenhum investimento, com produção exclusivamente a pasto e sem adoção de tecnologia estão saindo do mercado, independentemente do volume de leite produzido”, diz Alvim, que também preside a Comissão Nacional de Pecuária de Leite da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
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Este fenômeno foi mais acentuado entre 2015 e 2016, na visão da pesquisadora Rosangela Zoccal, da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora (MG). “Nesse período, o aumento dos preços pagos ao produtor foi menor do que o aumento do custo de produção. Uma situação dessas força o produtor a dois caminhos: a desistir ou a crescer”, diz ela, lembrando que o aumento de escala produtiva dilui custos.
Já o engenheiro agrônomo Abel Leocádio Fernandes, sócio-proprietário da Infinite Consultores, de Juiz de Fora (MG), comenta que, sem assistência técnica, crédito agrícola e outras alternativas de crescimento incentivadas por políticas públicas – “que praticamente não existem há décadas para este segmento” –, o pequeno produtor de leite ficará gradativamente à margem do processo. “Se ele tira entre 60 e 100 litros de leite por dia, mal vai conseguir um salário mínimo no fim do mês. Então, a tendência é que ele cada vez mais procure emprego em outras áreas, seja na fazenda do lado, como peão, ou outra atividade qualquer”, diz Fernandes.
“Além disso, aquele queijinho ou leite em garrafa PET que ele entrega de porta em porta terá cada vez menos mercado, pois a tendência, com a concentração da população em centros urbanos, é o consumo de produtos fiscalizados.” Nesse sistema pouco rentável e de pequena escala, outro grande desafio, na visão do economista e pesquisador da Embrapa Gado de Leite, Glauco Carvalho, é a sucessão familiar. “Este pequeno produtor de leite que se dedica também a outras atividades acaba lentamente, mas acaba, por falta de sucessor”, comenta. “O filho vê oportunidades mais atraentes na cidade, para onde vai estudar e trabalhar, descontinuando a atividade dos pais.”
50 anos
Lembrando o que aconteceu historicamente nos grandes países e blocos produtores de leite da atualidade, como Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e União Europeia, “a produção começou pequena, voltada à subsistência, baseada na ordenha manual de poucas vacas, de baixa produtividade”, conta o consultor e sócio-administrador da consultoria Transpondo, Wagner Beskow, de Cruz Alta (RS). “Com a urbanização, a partir do início do século 19, a atividade foi tomando corpo e importância e a demanda crescente estimulou produtores a aumentarem rebanhos, a selecionar uma genética especializada e a melhorar a alimentação dos animais.”
Beskow ressalta que todos esses países passaram por isso, assim como o Brasil está passando. “Ocorre que no grupo mais desenvolvido de países exportadores citados acima, isso tudo se deu 50 anos antes do que aqui.” Assim, em todos eles, sistematicamente, a produção nacional aumentou, enquanto o número de produtores diminuiu. “Produtores que não se modernizaram, não aumentaram a produtividade e não melhoraram a qualidade do produto não mantiveram resultados que justificassem a continuidade: ou sua renda líquida se tornou muito pequena ou a falta de qualidade de seu produto os eliminou, quando não ambos.”
Assim, o consultor relata que hoje o grande desafio está em auxiliar a faixa de produtores abaixo de 100 litros/dia, com renda líquida menor que R$ 400 por mês, a avançar para a faixa acima de 300 litros/dia. “E isso só tem sido possível para produtores que de fato desejam isso, que representam pela nossa experiência apenas 10% do total, pois o restante, quase que invariavelmente, dispõe de outras fontes de renda, como aposentadoria, auxílios sociais, outras criações, arrendamentos e ‘bicos’”, diz.
Justamente pelo fato de esse pequeno pecuarista conseguir subsistir com uma gama variada de atividades, o coordenador técnico do Projeto Educampo/Sebrae em Minas Gerais, Christiano Nascif, traça um destino menos sombrio. Ele concorda que a concentração na cadeia leiteira nacional já ocorreu, mas lembra que o pequeno produtor tem muito mais flexibilidade do que o médio ou o grande. A começar pelo fato de esse segmento se basear na mão de obra familiar, que tem custos menores ante seus concorrentes.
Conforme Nascif, embora a remuneração dessa classe de produtor seja baixa, acaba tornando viável a manutenção da atividade de pequeno porte. “Não que este produtor tenha vida muito boa. Ele vive, mas com pouco, incluindo aí as outras atividades que compõem a renda, como venda de ovos, milho, feijão, e da própria mão de obra para outras propriedades”, continua. “Ele tira o leite de manhã e à tarde vai trabalhar para os outros.”
Quanto a este assunto, estudo de 2013 da pesquisadora Rosangela Zoccal revela que, dos 610 mil produtores classificados com produção de até 10 litros/dia, conforme o Censo 2006, cerca de 420 mil, na realidade, não vendiam seu leite. Muitos produziam para o consumo da família ou faziam queijos artesanais. Assim, o leite desses produtores nem sempre é contabilizado como leite formal.
Ela também defende que a solução para a manutenção do pequeno produtor no mercado formal passa por nichos como leite orgânico, queijos e iogurtes artesanais. E lembra que, “dadas as dimensões continentais do País, ainda tem lugar para o pequeno produtor”, sem discordar, porém, quanto à concentração que de fato já acontece.
Médio encurralado
Para Nascif, quem está fadado a ser mais pressionado e desaparecer é o médio produtor de leite, que sofre, por um lado, a pressão de aumento de custos e por outro as dificuldades em ampliar a produção em escala. “Um grande produtor, por exemplo, consegue comprar insumos em grandes volumes e mais baratos e vender o leite mais caro; com o médio, ocorre o contrário. É um paradoxo”, diz.
Carvalho, da Embrapa, corrobora a afirmação de Nascif e diz que há pesquisas que apuram diferenças de preços de até 40% entre insumos comprados em grandes e menores quantidades. Sem contar a exigência maior de contratação de mão de obra, a impossibilidade de viver na clandestinidade, a pressão por qualidade e as grandes oscilações de preço do litro do leite no Brasil. “Aqui o leite está a R$ 1,50 e no mês seguinte cai para R$ 1. Qual negócio no mundo você consegue administrar com 30% de variação no período?” Carvalho ressalta ainda que o fato de a atividade agropecuária estar num país tropical permite uma “sobrevida” ao produtor familiar.
“Em um manejo basicamente a pasto, o clima tropical acaba permitindo ao pecuarista ‘errar um pouco mais’, o que não acontece, por exemplo, com os grãos. Mesmo com pasto degradado, as vacas reduzem a produção, mas continuam a dar leite. Só que, sem gestão, o criador não percebe que o que o animal deixou de comer vai se refletir lá na frente, na reprodução”, diz Carvalho. “Ele continua tendo uma renda para sobreviver, mas o cenário vai piorando ao longo do tempo.”
O consultor do Educampo/Sebrae lembra que um fator que também contribui para manter este produtor no leite é a permissividade que há no Brasil – e que não há em outros grandes países produtores – em relação ao leite clandestino. “Calcula-se em cerca de 10 bilhões de litros/ano a produção de leite não inspecionado no País”, diz o consultor, que é de Viçosa (MG).
“Aqui, uma cidade de 80 mil habitantes, ainda tem produtor entregando leite não inspecionado para sorveterias, para queijeiros. Ele sobrevive à margem das estatísticas oficiais e dificilmente o poder público interferirá de maneira assertiva nisso porque, queira ou não, esse universo de produtores rende votos”, diz, e sentencia: “Enquanto houver a possibilidade da existência do leite informal no Brasil haverá o pequeno produtor de leite”.
Políticas públicas são parte essencial da solução para os pequenos produtores
A saída para os problemas acima relatados não são fáceis, mas são possíveis. Ela passa, na visão dos especialistas e também com base em vários estudos comprovados na prática, pela assistência técnica, pelo acesso de fato ao crédito rural, pelo associativismo e pela gestão.
No quesito assistência técnica, Abel Fernandes, da Infinite Consultores, lembra de iniciativas importantes que já ocorrem no Brasil, como o programa Balde Cheio, o Educampo/Sebrae, programas do Senar e também de consultorias e de cooperativas, como a Aurora, de Santa Catarina. Mas ressalta a importância do poder público no subsídio à assistência técnica a pequenos produtores.
“Neste caso, o País terá de começar a falar outro idioma porque a palavra subsídio é cada vez mais abominada”, diz. “Mas é bom lembrar que um emprego gerado em uma propriedade leiteira resulta em outros nove na cadeia como um todo.” Sobre o cooperativismo e associativismo, Fernandes diz que “este é o caminho internacional, já trilhado por grandes países produtores, principalmente a Nova Zelândia”.
Marcelo de Rezende, diretor da Cooperideal, concorda que o produtor de leite está “bastante atrasado” tecnologicamente, e que a assistência técnica, normalmente ligada a órgãos públicos, não tem sido capaz de atender à necessidade de melhorar a gestão e o nível de conhecimento do pecuarista. Embora também considere o associativismo uma boa saída, ele alerta para o risco de esta prática se tornar um “acúmulo coletivo de ineficiências”, lembrando que as cooperativas competem com as demais empresas do mercado e por isso não podem tratar seus cooperados de maneira paternalista.
Glauco Carvalho, da Embrapa, concorda que a assistência técnica é de fato um grande gargalo: “A demanda é grande e sobre diferentes atividades, não só a pecuária leiteira”. Mas, para ele, o grande problema é a administração e gestão. “E, em geral, a assistência técnica não ensina a administrar. Este é outro obstáculo.”
E gestão pode ser responsável por quase 70% da renda de uma propriedade leiteira, conforme Christiano Nascif, do Educampo/Sebrae. Ele explica que a gestão tem três pilares, cada qual com 33% de peso: o primeiro é o volume de leite produzido; o segundo, o equilíbrio de custos e o terceiro o preço do leite. “O preço do leite é da porteira para fora, e o mercado é soberano. Da porteira para dentro, é necessário gerir a propriedade para equilibrar custo e produção”, ensina Nascif. “Então, 66% do sucesso da atividade leiteira depende muito mais do produtor e do gestor.”
Mas Carvalho, da Embrapa, lembra do papel da indústria. “É necessário pensar como cadeia produtiva. Se a indústria quer um leite melhor e em quantidade, tem de investir nisso, até porque o setor tem cerca de 40% de capacidade ociosa”, informa. Ele cita as cadeias de frangos e suínos como exemplos de evolução e bem representadas. Já a do leite, entretanto, “é pulverizada em algumas associações com interesses difusos e sem o pensamento de cadeia leiteira”.