Por Sergio Raposo de Medeiros, Pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste
Imagine que exista um alimento cujo consumo seja altamente desejável e que, exatamente por isso, seja consumido acima da quantidade recomendada. Que, fruto dessa situação, ele seja considerado um problema de saúde pública, sem contar as extensas áreas em que sua produção é realizada, com os esperados custos ambientais de sempre.
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Nesse cenário, alguém oferece um produto alternativo para substitui-lo que promete ser a solução para todos esses problemas. Isso tem ocorrido nos últimos tempos, com bastante notícias sobre a carne de laboratório. Em geral, são informações muito otimistas, a tal ponto de convenceram algumas pessoas que a pecuária será, em breve, uma atividade obsoleta e dispensável.
Abaixo, dez perguntas e respostas que visam dar uma perspectiva mais próxima à realidade. Ela visa ratificar e complementar um artigo publicado em fevereiro passado como Boletim do Centro de Inteligência da Carne, da Embrapa sobre esse mesmo assunto (clique AQUI).
1) Carne de laboratório pode ser chamada de carne?
Sim, mas sem consenso. Tecido muscular animal ou humano é como a maioria dos dicionários definem a carne. Como a carne de laboratório é aquela produzida a partir de uma célula que originalmente provem de um animal e que é cultivada em um meio de cultura, gerando milhões de outras células que formam estruturas semelhantes ao músculo original, ela estaria dentro do escopo da definição usual.
Todavia, no Brasil, há um projeto de lei (Projeto de Lei 5499/2020) em tramitação no Congresso que visa impedir o uso, tanto para produtos que imitam carne usando vegetais, como da carne de laboratório, mas ao “proibir a utilização da palavra ‘carne’ e de seus sinônimos para anunciar ou comercializar alimentos que não contenham, em sua composição, proporção mínima de tecidos comestíveis de espécies de açougue”, parece ser abrangente o suficiente apenas para ser aplicada às alternativas baseadas em plantas. O Uruguai já aprovou lei semelhante, mas parece ter a mesma limitação de sua congênere brasileira e, a rigor, deixa a brecha para a carne cultivada.
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Assim, são usados variados termos para se referir a ela: “carne de laboratório”, “carne celular”, “carne in vitro”, “carne limpa”, “carne sintética”, “carne artificial” , entre outros, mas em textos mais científicos tem prevalecido o termo “carne cultivada”. O termo a ser usado tem uma grande importância para sua aceitação, sendo claro que entre “carne artificial” e “carne limpa”, por exemplo, a um nome que a favorece e outro que a prejudica.
2) Há necessidade de animais vivos para produzir carne de laboratório?
Sim. O processo se inicia com a retirada de uma biópsia, ou seja a retirada de uma porção de tecido de uma animal vivo. Assim, para as pessoas que evitam comer carne por questões ligadas ao uso de animais de produção, esse é um dos primeiros pontos em que a carne de laboratório não seria atraente para esse grupo.
Por isso, há esforço para não depender dessa etapa. As soluções até agora vislumbradas, contudo, se chocam com a tendência dos consumidores de quererem sempre o produto mais próximo possível do alimento natural.
3) Há necessidade de abate de animais para produzir carne de laboratório?
Sim. O meio de cultura usado para o cultivo das células ainda é o soro fetal bovino (SFB), ou seja, a carne de laboratório ainda depende desse insumo para a produção. Existe um grande esforço para meios de cultura alternativos, sendo este um dos maiores desafios para escalar a produção da carne em laboratório.
4) Onde está a carne de laboratório no mundo?
Em todo lugar. Iniciativas para produção de carne de laboratório estão espalhadas por todos os continentes e a partir de células de diversas espécies de animais, incluindo a australiana VOW que trabalha com células de canguru. A Europa tem para si o anúncio do primeiro hambúrger de laboratório em 2013, pelo grupo do biologista vascular Mark Post,da Universidade de Maastricht na Holanda, várias iniciativas de financiamento público e várias empresas.
Nos EUA, investidores do Vale do Silício, têm feito grandes apostas nessa alternativa, com destaque para Bill Gates. Uma das empresas que tem conseguido maior exposição na imprensa é a Aleph, de Israel. Na América do Sul, temos a Craveri Laboratories,na Argentina, cuja divisão BIFE (Bio Ingeniería en la Fabricación de Elaborados) investe em carne de laboratório.
No Brasil, desde o ano passado, na Universidade Federal do Paraná, foi criado o curso “Introdução à Zootecnia Celular” e, recentemente, a BRF anunciou que vai investir também nessa linha, em parceria com a Aleph, prometendo produtos no comércio em 2024. Cingapura foi o primeiro país a conceder registro a um produto com 70% de carne cultivada de frango, feito pela empresa americana Eat Just.
5) Por que ainda não há produção em escala industrial?
Porque é bastante complicado escalar. Tem havido muito espaço para a carne de laboratório na imprensa e as notícias fazem crer que se estaria bastante avançada sua produção e logo teremos corredores inteiros dessas opções nos supermercados. A realidade é bem outra, pois inexiste no mundo produção em escala industrial.
Os desafios para conseguir passar de produção em escala experimental para industrial são enormes e ainda dependem de alguns passos nada triviais: (i) conseguir um meio de cultura alternativo que seja (bem) mais barato que o soro fetal bovino; (ii) produzir outros insumos necessários, como proteínas promotoras de crescimento, de forma economicamente viável; (iii) fazer com que os processos, já complicados de serem bem sucedidos em laboratórios, mantenham-se viáveis em grande escala e (iv) provar que o produto produzido é seguro e que tem mercado.
6) Qual a expectativa de fatia de mercado para a carne de laboratório?
Esse é um ponto bastante indefinido. Um relatório da consultoria Kearney faz uma projeção bastante otimista que, já em 2030, 10% do mercado mundial de carne seriam atendidos por carne de laboratório e que, em 2050, 35% da carne consumida no mundo seria dessa fonte.
Em função de ainda não existirem plantas industriais e sua viabilidade mercadológica não ter sido colocada a toda prova, há dúvida se as empresas do setor conseguirão entregar produtos consumíveis em grande quantidade em curto prazo. Analistas de mercado acreditam que ainda serão necessárias de três a cinco décadas para que haja oferta firme no varejo desse tipo de produto.
7) Serão necessárias novas regulamentações para a carne de laboratório?
Certamente. Esse é outro ponto que, apesar de já estar sendo discutido para se delinear o arcabouço legal por agências reguladoras em alguns países, a regulamentação depende que as formas de produção em escala estejam bem definidas para que se possa identificar quais os pontos críticos da produção. Ilustra bem isso que, até mesmo o tempo de prateleira, só poderá ser determinado de fato com material proveniente da produção real, em grande escala.
Ao mesmo tempo, há preocupações bem maiores, como a de, por envolver trilhões de divisões, alguma desregulação das linhas celulares possa ocorrer com potenciais efeitos desconhecidos na estrutura muscular e, eventualmente, no metabolismo e na saúde humana. Pela complexidade do tema, ele demandará um trabalho árduo e extremamente técnico dos responsáveis por esse escrutínio.
8) É possível afirmar que a carne de laboratório terá realmente um impacto ambiental pequeno?
Ainda é cedo. Aqui voltamos a mesma questão de inexistir plantas em escala industrial, que fazem com que todos os dados usados nas estimativas sejam baseado apenas em modelos de como funcionariam. Em um interessante Webinar , realizado pelo Grupo de Pesquisa e Análise de Carne, da Universidade de Londrina, o Dr. Jean-François Hocquette (INRAE, França), comenta sobre três boas revisões em que a mais antiga daria vantagem para a carne de laboratório, mas, outras duas mais recentes, mostrariam o contrário.
O Dr. Hocquette conclui que, no final das contas, por não termos sistemas reais de produção da carne cultivada, todos os estudos se baseiam muito mais em suposições e que comparações mais definitivas dependerão de sistemas reais bem definidos.
9) A carne de laboratório será nutricionalmente equivalente?
Provavelmente, não. Neste ponto há um lado favorável e outro que levanta dúvidas quanto à equivalência. Do ponto de vista de manipulação da composição nutricional, os entusiastas da carne cultivada apontam que é bem mais fácil fazer enriquecimentos nutricionais em um produto industrial.
Há, porém, dois fatos que pesam em favor do produto natural: (i) a forma com que o nutriente está presente no alimento natural muitas vezes influi bastante no seu aproveitamento (por exemplo, o ferro na forma heme é muito mais disponível que na forma mineral) e (ii) Há nutrientes que ocorrem em pequenas quantidades (micronutrientes) e que só ocorrem por conta do metabolismo do animal como, por exemplo, o ácido bovínico.
Este ácido graxo que ocorre principalmente em ruminantes, por ser decorrente do metabolismo ruminal, foi reconhecido como biologicamente ativo apenas no final do Século XX, sendo que seus impactos positivos à saúde humana ainda nem foram totalmente compreendidos. À semelhança do ácido bovínico, nada garante que não estejamos perdendo outros compostos naturalmente presentes na carne os quais não reconheçamos ainda sua real importância nutricional.
10) Quem vai comer carne de laboratório?
Sabe-se mais quem não deve comer: vegetarianos e veganos. De todas essas perguntas, essa é a mais importante, pois, sem consumidores, o fracasso de um novo produto é certo. No caso da carne de laboratório, o público-alvo parece ser, principalmente, pessoas que se oponham à necessidade do abate dos animais e, também, aquelas que se preocupam com a pegada ambiental da pecuária (infelizmente, frequentemente em função de informações totalmente distorcidas).
Como qualquer novidade, há desconfiança do consumidor quanto a seu consumo ser seguro, mas alguns dados, inclusive brasileiros, mostram razoáveis índices de aceitação. Os dados brasileiros, com autores também da equipe do curso de zootecnia celular mencionado acima, mostram que cerca de 4 entre 10 entrevistados de Curitiba e Joinville respondem positivamente à pergunta se comeriam carne de laboratório, com outros 2 desses 10 afirmando que eventualmente podem consumi-la.
Contudo, dados de pesquisa feitos na Europa mostram muito pouca disposição do consumidor em pagar a mais pela carne de laboratório. Isso deve ser uma grande preocupação por dois motivos: (i) a carne de laboratório deve ser mais cara que a carne convencional e (ii) nesse tipo de resposta, mesmo quando é expressa a intenção de pagar a mais, geralmente, na condição real, quando efetivamente tem que colocar a mão no bolso, a maioria das pessoas acaba ficando com a alternativa mais em conta.
Por fim, passada a barreira da novidade e do preço, se a experiência sensorial não for inteiramente satisfatória e o consumidor não desejar repetir a experiência, fim de linha para a carne alternativa. Nesse caso, faltam dados de pesquisa para qualquer afirmação, restando se basear na feição dos repórteres que experimentam amostras em frente as câmeras, algo um tanto arriscado para tomar como base.
Considerações finais:
No início do texto, a situação descrita não se referia a carne, mas ao açúcar. Foi em 1879, quando foi criado o primeiro adoçante artificial, a sacarina. Depois da sacarina, muitos outros adoçantes surgiram e vários deles disputam mercado, mas, quase 150 anos depois, nenhum deles acabou com a indústria do açúcar. Tampouco, qualquer uma delas rivaliza com o produto original, que ainda é a preferência dos consumidores. Se isso ocorre com a sacarose, composta apenas de uma molécula de glicose e outra de frutose ligadas entre si, o que dirá da complexidade do tecido muscular ou de um corte cárneo, como uma picanha ou uma costela?
Os adoçantes, todavia, permanecem como um bom negócio, pois têm seu espaço no mercado, seja para as pessoas que não possam consumir o açúcar ou por aquelas que, por qualquer motivo ou ocasião, prefiram evitá-lo. Talvez, daqui a 100 anos, tenhamos a mesma situação para a carne convencional e suas alternativas.